Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida como se a vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida.
(Antônio Vieira, Sermão de Quarta-Feira de Cinzas)
Pedes-me que te conte agora o que vejo. Que te conte, pelo menos, a causa de meu amor por esse padre, que afinal conheces pouco. O amor não tem causa, querido amigo. Mas posso dizer-te que António Vieira era um belo homem.
— Belo?
— Sim, belo; até dessa maneira imediata que se tem como ofensa: alto, espadaúdo, de olhos amplos, vestido com uma túnica grosseira, mais parda do que preta. Dormia pouco, comia farinha de pau, lia Santa Teresa de Ávila e, sobretudo, tinha o poder de transformar o mundo através da palavra. Teve esse poder como ninguém até hoje.
Ninguém? Nem Sócrates? Nem Cristo? Nem Buda? Nem os profetas? — perguntas. Queres dizer que sou uma exagerada, e é verdade. Temos de carregar no contornos do mundo se pretendemos sacudi-lo — Vieira compreendeu-o como ninguém. Sócrates procurava o rigor do conhecimento, não a transfiguração do universo. Os líderes espirituais e os profetas fazem da palavra uma trincheira ou um jardim, não um engenho para caminhar no escuro, como fez Vieira. E Cristo, meu querido, que eu saiba, não deixou nada escrito, deixou que escrevessem por ele os homens, que sempre têm trinta versões para mesma história. Deixou a palavra escrita aos homens — talvez por amor, até acredito que sim, como prova de amor extremo, que actua através do silêncio para não ser confundido com uma demanda de gratidão. Cristo deixou aos homens o arbítrio e o triunfo da palavra escrita. Para que o entendessem, e entendessem a arbitrariedade das coisas do mundo, usou a parafernália dos milagres. Até seus discípulos precisaram dos milagres para o seguirem.
Vieira não precisava de nada nem de ninguém. No fundo, acho que lhe bastava a consciência de que tinha Deus dentro de si — ou a eternidade, ou o conhecimento, como preferires. Era um precursor; fervia-lhe no peito uma verdade e só com ela tinha ligação. Essa verdade libertava-o da dor comum; sentia as injustiças e as ofensas — e não foram poucas as que lhe fizeram. Vingava-se, convertendo em palavras escritas a experiência da mesquinhez humana. Vingava-se, gritando do púlpito esses sermões irados, consciente de que não conseguiria reformar os costumes de seu tempo, mas ainda mais consciente de que esses textos, ateados por uma raiva íntima e incendiados pela lucidez genérica que consagra as paixões particulares, lhe sobreviveriam. Trabalhava como se vivesse no futuro — e por isso escreveu coisas que ainda hoje são arrumadas no altar dos prodígios, e adoradas pelo exterior de seu entendimento. Eu própria o adorava assim, pela pintura do texto e pela música da sintaxe, aquele amor reverente, escolar, cheio de presunção e desconhecimento, que se vota às ruínas do passado. Até que me apareceu outro António, o que trouxe Vieira para dentro da minha vida […].
A eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma figura.
(Antônio Vieira, Sermão de Nossa Senhora do Ó)
O círculo do tempo pára numa nova idade barroca, trabalhamos o supérfluo, a ideia de arte vale mais do que a arte, a ideia de cultura separa-se da cultura possível e particular de cada um, em rendilhados infinitos, citação da citação da citação, fragmento do fragmento do fragmento, intermitências de luz cosidas em brocados de sombra, a religião da ironia substituindo perfeitamente a religião dos deuses. Tornas a dizer que exagero, que há uma diferença essencial entre o livre arbítrio e a sujeição a livros sagrados, entre o ritual da irrisão e o ritual da oração — mas, talvez porque estou cega, ouço um mesmo rasgar de sedas, um mesmo uivar de andrajos, um mesmo pavor animal gemendo sob a aparência humana. Pois não sentes a irracionalidade que grita no desejo de dominação humano? Não sentes a sede de domínio atrofiando todas as possibilidades de prazer? Não sentes que temos a cabeça a prêmio?
Não me entendes, caríssimo Sebastião; dizes que misturo tudo. Dizes que é incomparável a liberdade de que hoje dispomos para imaginar, escolher, criar, viver. Pelo menos na nossa civilização, dizes. E eu rio-me do que tu dizes […] porque aquilo a que chamas a nossa civilização ainda nem sequer começou. Importa-me a liberdade, sim, mas vejo que a usamos ainda e apenas como outra espécie de grilhão. Vestimos a liberdade como outrora vestíamos a submissão; ela não é mais do que um traje de baile, com um carnet em que apontamos os nomes daqueles com quem dançaremos para brilhar diante dos outros. Democratizou-se o anseio de estatuto, mas não conseguimos ainda sair dele.
Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia de eternidade. Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião. A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude — o lugar mais rápido, inseguro e variável da existência humana. O lugar do querer ser. Não vês o contra-senso que isto representa? A violência? A prisão?
Não, não vês, como eu não via. […] Só através dos olhos desse Antonio que veio do Brasil eu comecei a ver. Nos olhos dele aprendi a ler [Padre Antônio] Vieira, como no seu corpo aprendi a saborear o desejo infinito, o desejo como experiência da eternidade. Para essa experiência não tenho palavras. Nem sequer silêncio. Dessa experiência, sobrou-me o que sou.
(PEDROSA, Inês. A Eternidade e o Desejo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, pp. 25-26)