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abismo, anjo, arrebatamento, encontro, inapreensível, inspiração, Kovadloff, metáfora, Musa, palavra, poeta, presença, Rembrandt, silêncio
“É curioso que os gregos, que pressentiram quase tudo, não tenham concebido uma divindade do silêncio. E mais que curioso, estranho, se atentarmos ao fato de que ninguém como eles compreendeu melhor a finalidade da poesia e o limite infranqueável de toda ação discursiva.
[…] Talvez a interpretação mais remota do silêncio provenha, como quase tudo que é remoto, do Oriente. Porém, entre nós, ocidentais, a primeira exegese sugestiva do silêncio é cristã, e sua formulação encontra-se na concepção monástica. Quando digo exegese, quero dizer compreensão de seu alento linguístico e dos valores do sentido que o silêncio guarda.
[…] Como o homem pode romper com o mutismo que implica a obviedade, com a palavra que se concebe prenhe de sentido inamovível? Que é, finalmente, o que nos faculta ir além desse enraizamento na literalidade, permitindo que nos afastemos do habitual, ‘esse monstro‘, segundo Shakespeare, ‘que devora todo sentimento‘? [1]
A aptidão para romper com o costume é um dom excepcional. E pareceria apropriado chamar de inspiração a demolição dessa submissão poderosa, quase sempre súbita e sempre libertadora. O termo é antigo e, para muitos, venerável. Foi combatido, além do mais, como um vocábulo que mascara, através do qual se pretende subestimar o esforço exigido ao criador pela configuração de suas obras. Com idêntica decisão é associado à graça, a um doma poucos ofertado e imprescindível na construção de qualquer iniciativa artística.
[…] Da mesma forma que na tela de Rembrandt o anjo insinua-se a Mateus através de um sussurro revelador, a inspiração fala ao ouvido do poeta. O gesto de extrema discrição com o qual o anjo se dirige ao seu ouvinte absorto desperta, irresistivelmente, nossa curiosidade, e de imediato e antes de qualquer outra coisa, gostaríamos de saber o que está dizendo. Mas se desejarmos saber o que está sendo dito, cabe perguntar-se, em primeiro lugar, o que representa aquela fala. Concentremo-nos, para isso, na obra de Rembrandt. É de 1661. Chama-se O evangelista Mateus inspirado pelo anjo. Observemos, acima de tudo, Mateus. Aparece mergulhado numa atitude expectante. Suspenso o gesto de escrever, empunha a pluma em sua mão direita. Está em silêncio. Mergulhado num silêncio concentrado. Poderíamos dizer que a mão flutua sobre o papel, ainda indecisa. O olhar e o cenho não dissimulam o esforço de compreensão no qual o corpo inteiro, tenso, erguido, parece comprometer-se.
Em que Mateus presta atenção? A uma voz que vem de fora. Enquanto cala, o evangelista ouve concentrado, não o que dele mesmo provém, e sim o que vem até ele. Sua atenção não é compreensiva, e sim apreensiva. Não entende; atende. Esta remota necessidade de representar o homem agraciado pelo poder de expressão como alguém exposto a uma força incondicionada, alheia ao seu poder e à sua vontade própria, guarda, em minha opinião, relação com a sabedoria, e não com o preconceito ou a ingenuidade. Fora do homem, além das fronteiras de seu entendimento, está o nada, o real irredutível, segundo Kant, às faculdades interpretativas da nossa percepção; o real não homologável ao mundo objetivo; aquilo que resiste ao entendimento sob o nome do inominável.
Nessa medida, ao escutar o anjo, Mateus dá ouvidos não ao inteligível, mas ao ininteligível. Não escuta o que pode compreender, e sim aquilo em que pode crer — o inconcebível. Como consequência, ao escrever não transcreverá o escutado. Isso não lhe será possível. O sentido do sussurro do anjo é equívoco à razão. Só é inequívoca a presença do anjo: o sussurrar, a evidência de que existe alguém fazendo isso. De que fala o anjo é coisa que não se sabe nem se saberá. Mas, para verificar que não se sabe, é imperioso que o anjo esteja ali. O efeito dessa presença é o que se deixará sentir no papel. Infundindo a esse sussurro um sentido, Mateus se fará eco dele; traduzirá o impacto que esse encontro excepcional teve sobre seu coração. A sua será uma palavra inspirada na medida em que consiga atribuir um sentido ao que, de per si, não pode outorgá-lo a si próprio, e no entanto o requer. Conceberá então Mateus a intenção do anjo, falará de seus propósitos. O ouvir se converte, dessa forma, na instância decisiva. O ouvir, ou seja, o interpretar; o oferecer um valor ao inalcançável murmúrio da fala transcendente. Ao fazer eco à voz do anjo, Mateus não repete, e sim o traduz. Da mesma forma que o evangelista, o poeta é aquele que foi inspirado, convocado para infundir forma, ou seja, conteúdo discernível ao irreproduzível por ele escutado. Trata-se de projetar nas palavras a insinuação de uma presença intangível; de plasmar num enunciado consequente a vigorosa vivência de uma proximidade que não admite ser apreendida, a não ser como mistério. De modo que, para poder captar o que dele mesmo provém (a interpretação), o poeta, tal como o evangelista, deverá acima de tudo abrir-se ao que vem até ele sem ser ele mesmo: a inspiração, a extrema alteridade. Criar será, pois, extrair do nada; atuar de acordo com a experiência que do nada se teve. Mas o nada, conforme foi dito, longe de ser ausência ou vazio, é radical alteridade — a daquilo que não se subordina à condição de objeto e que, por isso, consegue fazer sentir o influxo absorvente de sua projeção sobre o homem, revelando-se diante dele como o contato com o transcendente mais alto e mais profundo que lhe tenha sido dado ter.
Pode-se, em consequência, sustentar que aquilo que ao poeta convoca em termos de inspiração não é nunca um discurso conformado de antemão nem uma mensagem explícita. E justamente por não ser isso, o poeta não o compreende. Trata-se, melhor dito, de uma voz, a de um mensageiro que se faz ouvir, e não um enunciado que se deixa captar. Essa voz constitui um chamado; ela chama a atenção sobre a sua presença, desvia a atenção para si, a atrai. A insinuante voz do anjo arrebata Mateus, bem como o poeta é arrebatado pelo sussurro da musa. O apóstolo e o poeta são seres conquistados, arrancados de seu lugar usual de compreensão pelo impacto, não de um novo significado (uma vez que este só surgirá mais tarde, sob a forma de sua obra), mas de uma presença luminosa e inesperada — a do real subtraído de seu jugo ao previsível. O feitiço dessa instânca inédita se deixa sentir sem que seu conteúdo chegue a cristalizar. Este impacto desloca o homem que o protagoniza. Mas na mesma medida em que o desloca, torna a situá-lo. Reimplanta-o, ainda que agora em terra incógnita. Poeta é, primeiramente, não quem sabe instrumentar o idioma, e sim aquele que se mostra apto para desembaraçar-se do uso corrente do idioma. Porque se é indiscutível que o poeta dá mostras de idoneidade através de sua eloquência, não menos indiscutível é o fato de que esta eloquência só pode existir quando se nutre onde não impera o entendimento generalizado das coisas. E ali, onde o convencional já não prevalece, o silêncio faz ouvir os passos que denunciam sua proximidade, a contundência do mistério, sua vivacidade, o magnetismo de um sentido que, deixando-se roçar como alusão, franqueia o acesso à vivência de seu enigma.
[…] Na apreensão do assombro conseguida pelos antigos gregos palpita a intenção que aqui se reconhece à inspiração. Nos interstícios da fala consensual, o olhar do poeta, embargado pela inspiração, encontra sua condição propícia. Em sentido estrito, o anjo não se pronuncia para que entendamos literalmente o que nos diz, mas para que percebamos que quer nos dizer alguma coisa. O anjo é metáfora, deslocamento. Verificamos que nos interpela. Percebemos que veio dizer, mas não O QUE veio dizer. Cria, pois, quem adjudica uma forma poeticamente plausíveil a essa matéria inexpugnável — silenciosa — à qual aqui remeto ao me referir à presença da musa. E toda forma poeticamente consumada só existe porque soube oferecer às palavras o que é inerente à irrupção do anjo: a força de uma presença dotada de fundamento que não se inscreve, porém, no leito habitual dos significados; capaz de caracterizar, mas refratária a definir; conotativa, e não denotativa.
Falo da margem do mundo que escapou da miragem da determinação; desse outro rosto da paisagem que, através da imprecisão de seus traços, denuncia a unilateralidade de suas feições obstinadamente familiares, e insinua uma alteridade possível, uma incógnita essencial. Esse murmúrio, através do qual a musa se pronuncia, depura a sensibilidade, a submerge num estado de incomparável disposição perceptiva e, mediado por ele, haverá de brotar, como seu fruto mais precioso, o pronunciamento poético propriamente dito. Por obra da escritura construída como expressão pessoal, a enigmática presença da musa se converte em significado, quer dizer, em símbolo do vínculo que com ela o poeta estabeleceu. A escritura é conjuntura, lugar de convergência. Ponto de encontro entre o arrebatamento que liberta e a compreensão que organiza: metáfora. E se, no instante da inspiração, o silêncio primordial se deixa ouvir, nas horas de trabalho se manifesta o destino experimentado, em termos de interpretação criadora, por este pronunciamento em si mesmo inconcebível.
É preciso sublinhar: o poeta jamais nos dirá o que ouviu. E o silêncio extremo se prolongará em suas palavras como eco de um encontro decisivo. Trata-se, enfim, de nos aproximarmos, como recorda Rilke, “de algum lugar das fronteiras de nossa existência”. Ali, haverá de “roçar-nos com seu sofrimento, esse silêncio maior que tudo”. [2]
~ Santiago Kovadloff ~
(O Silêncio Primordial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, pp. 22-33)
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NOTAS:
[1] Wiliam Shakespeare. Hamlet, Ato III, Cena IV. Em: Obras Completas. Madri: Editorial Aguilar, 1951, p. 1376.
[2] Rainer Maria Rilke. Lettres à un jeune poète. Buenos Aires: János Peter Kramer Éditeur, 1945, p. 89.