Excerto de Dia de Finados, do escritor holandês Cees Nooteboom (Companhia das Letras, 2001, p. 210, 228-235)
O dia ficara tão cinza quanto se anunciara, o cinza de banheiras de zinco, das que hoje em dia quase não se viam, de lajes dos calçadões, de uniformes falsos, conforme a massa das nuvens filtrasse mais ou menos a luz. […] O vento transformara todos os galhos em chicotes, que fustigavam uns aos outros e gemiam de dor ao fazê-lo. […]
Na Falk-Platz os sons do vento são os mesmos, são outros. Primeiro precipitou-se pelo antigo vazio da passarela da morte, lá reuniu fôlego, agora avança mais ruidoso e ataca um inimigo insignificante, o infeliz arvoredo, [um d]os poucos remanescentes de boa vontade. Agora é mais um frufrulhar e sibilar, e Elik Oranje escuta-o como sussuro cortante, como baques e pancadas na única janela de seu quarto, como oráculo, as vozes roucas, incompreensíveis, de mulheres idosas. Está sentada em posição de lótus no meio do quarto acanhado, porque quer concentrar-se, mas não consegue. Seus pensamentos vão de um lado para o outro feito uma pipa e retornam cada vez a três pensamentos de todo discrepantes, que ela tenta acomodar: a verdade sobre os amantes e abortos de sua rainha; a última aula sobre Hegel; e aquele homem que lhe tocara a cicatriz de modo ainda mais íntimo que a própria trepada.
“Assim você não consegue pensar”, diz em voz alta, e é verdade; a cada um daqueles três pensamentos, ela puxa um pouquinho mais, como se desfiasse um pulôver. E ao mesmo tempo ela os repassa, contas de um rosário. Aquela cicatriz pertence a ela e somente ela, o instante do fogo, a dor, o cheiro de queimado, o homem que espreme seu cigarro, retorce, enquanto a esmaga e dilacera com seu peso agressivo, o bafo de álcool da boca que balbucia palavras, os urros dela, sua mãe que aparece cambaleante no quarto e tem de se escorar na porta, e observa; aquilo tudo é dela. Meu, meu. Sobre isso nunca se pode falar. Todos os outros momentos passam, aquele fica. Está lá. Naquele instante nasceu a recusa. Então e sempre. Do quê? A recusa. E agora um outro homem tocara sua cicatriz com o dedo, circundara suavemente, como se pudesse curá-la. Não. Ninguém a tocara. Com ternura, a palavra que não deve ser pronunciada. Como quem soubesse de tudo. Mas era impossível.
E então novamente, como se tivesse algo a ver com isso, a outra. A rainha de quem sabia cada vez mais, e assim cada vez menos, já que cada fato levantava novas questões. A mulher de antanho, como às vezes a chamava. Um mulher a quem se ligara e com quem, entretanto, não podia ter nada a ver, com quem não podia se identificar em hipótese alguma, embora soubesse que isso já ocorrera. Inadmissível. Nada disso podia transparecer no que escreveria. “Seco feito pó” teria de ficar, e contudo, quanto mais lia, todas aquelas vozes conflitantes, todas aquelas lacunas, tanto mais sentia-se tentada a preencher os espaços vazios e as incertezas com emoções, como se fosse ela quem lutasse pelo seu reino, ela que fosse ferida, abusada, que tivesse de fugir e contra-atacasse, buscasse o auxílio de outros homens; aquilo era imperdoável, como se ela escrevesse um romance, uma fábula pífia na qual se podia torcer a bel-prazer a verdade e se diria: “Nesse momento pensou Urraca…”, enquanto nem em sonho se podia saber o que ela pensara.
Havia dez livros sobre a vida palaciana daquele tempo, e todavia não se sabia nada, como fediam, como falavam, como amavam, tudo o que se dissesse era pura especulação. Num romance seria possível fazer com que a rainha tivesse um orgasmo, mas era um orgasmo de então comparável ao de hoje? Em que medida esses outros eram outros, ou ainda, em que medida eram iguais? O Sol circundava sublime a Terra, a Terra era o centro do cosmo, e o cosmo jazia oculto nas mãos de Deus; tudo era harmônico, o mundo estava encerrado na ordem divina, e nessa ordem cada um tinha seu lugar hierárquico. Tudo isso se tornara tão inconcebível que não se podia mais explicar tais sentimentos, nem sequer de forma aproximada. Mas não havia, por outro lado, constantes físicas na espécie humana que permitiam imaginar tudo quanto fosse possível? As cruzadas da Igreja contra a carne, tal como se podia observar nos capitéis românicos, onde o castigo para a volúpia era representado com um sadismo ainda e sempre capaz de nos dar náuseas; pois bem, mas por outro lado, as vozes sequiosas dos trovadores, cuja luxúria a custo era sofreada por ritmo e rima.
Ela balançava de um lado para o outro. Sua dissertação de mestrado escrevera sobre um ensaio de Krzysztof Pomian, Historie et Fiction, e como epígrafe utilizara um adágio árabe que achara em Marc Bloch: “As pessoas se parecem mais com seu tempo do que com seus pais”.
“Soa como um truísmo para mim”, dissera o seu orientador, “uma frase vazia, mas tem lá o seu impacto”, e com tanta naturalidade lhe pousara a mão sobre o ombro e o apertara com tanta suavidade que não se podia dizer nada a respeito. Ela retirara a mão qual um objeto estranho e a soltara. O castigo, claro, foi outra vez ironia tutelar:
“Noli me tangere“.
“Como quiser”.
“Bom, queria dizer o seguinte: dispenso esses chutes altamente duvidosos. Estudamos aqui pura e simplesmente história. Especulações eu deixaria por enquanto para os bambambãs.”
Bambambãs masculinos, entenda-se, mas era estupidez demais tecer qualquer comentário a respeito. Os homens, por sinal, não suportavam ser contestados. […]
Com quem ela falava, afinal? Não seria muito melhor que simplesmente se ativesse a sua rainha? Que estudasse com pachorra os documentos, in-fólios, fontes, que cultivasse o seu próprio jardinzinho? Pois isto já lhe ficara claro: a região delimitada que escolhera aumentaria a cada dia; atrás de tudo quanto escarafunchasse emergia algo diferente: dissertações sobre legações papais a Santiago, sobre alianças com reinos muçulmanos, sobre o influxo dos beneditinos. Qual o sentido dessa rede tão labiríntica de que se sabia tanto e, ao mesmo tempo, tão pouco? Qual a função de toda essa busca minimalista, tão paciente, ao lado das grandes teorias arrebatadoras que eram [tão] mais estimadas? Seria aquilo anos de trabalho a fim de contribuir com algumas migalhas para o grande instante apoteótico?
Levantou-se e espreguiçou-se. Agora tornou a ouvir o vento, o grito e o sussuro. Essa sensação de estar sozinha, não podia explicá-la a ninguém. A sensação de completa autonomia, a indiferença em relação a seu entorno, aninhada num silêncio auto-imposto, letárgico, penetrante, salutar.
Em Amsterdã, multidões inteiras enfurnavam-se em bares, e ela se perguntava quando é que alguém ainda lia outra coisa que não os jornais, cada vez mais gordos e desagradáveis. Talvez ali a sensação não fosse tão forte porque Berlim era muito maior; porque ali se podia ser anônimo, ao passo que em casa era comum ter a impressão de que se pusera em marcha um grande processo de infantilização, uma fatal e insuportável superficialidade em pessoas que pareciam querer provar sua individualidade pelo fato de rirem em massa das mesmas piadas, de resolverem as mesmas palavras cruzadas, de comprarem os mesmos livros e quase nunca os lerem; uma autocomplacência de tal modo desagradável que chegava a dar engulhos. Todas as suas amigas praticavam ioga, nas férias iam para a Indonésia, faziam shiatsu, cada uma parecia ocupada com milhares de coisas que só se podia fazer fora de casa. Quase ninguém aturava a si próprio.
“Também não exagera!”
Quem lhe diria isso senão ela mesma? Foi até o espelho partido e contemplou-se.
Não, melhor não.
[…]
Crédito das imagens: As duas fotos em movimento, ou Cinemagraphs, que aparecem neste post foram criadas por Kevin Burg & Jamie Beck do Ann Street Studio.